terça-feira, 1 de maio de 2018

Belchior virou "febre" no Ceará após sua morte?




Por mais discreto que Belchior tenha tentado se tornar nos últimos anos de sua vida, o artista virou uma espécie de figura mítica na música brasileira. Para além da obra que permanece atual, Antônio Carlos Belchior fez escolhas que desafiaram a imprensa e seu próprio percurso artístico ao assumir que a vida era, de fato, diferente. Que nada era divino. E, ao se retirar, Belchior virou cult.
Mas desse ponto até sua morte foram quase 10 anos. E do cultuado cantor e compositor a personagem cada vez mais recorrente na memória popular, Bel se viu nos muros da cidade e até nome de centro cultural virou. Só demorou quatro meses após sua morte para chegar nas livrarias como biografado pelo jornalista Jotabê Medeiros (Apenas um Rapaz Latino-Americano, 2017), em um processo de estudo e descoberta entre vida e morte. Para homenagear os 70 anos do artista, a Warner Music lançou a coletânea "Pequeno Mapa do Tempo: Belchior 70 Anos". Para os colecionadores mais fervorosos, a gravadora colocou no mercado o box "Tudo Outra Vez", com seis discos lançados entre 1974 e 1982.
Teria Belchior virado "febre"? Uma coisa é certa. A crônica-relato musical, inquietude e contestação política do autor de "Alucinação" permanecem fortes. Não há sinal de vanescer.

O músico Oscar Arruda comenta que Belchior, assim como Fagner e outros nomes da música cearense da década de 1970, trazia influências do folk e do rock. Justamente por isso, ele considera difícil classificar a música de Bel em um estilo, a exemplo da Música Popular Brasileira. "São canções muito bem elaboradas, questões existenciais, política, medo e solidão", avalia. "Um homem com a vida tão interessante quanto a própria obra, que em dado momento exerce o direito de se retirar.
Questões existenciais abordadas por Belchior bem lembram o lirismo do próprio Oscar Arruda. Em 2017, ele lançou o álbum Egomaquia. Nele, explora existencialismo, psicodelia, a luta consigo mesmo e um estado de constante busca. Temas que dizem respeito à música feita no Ceará nos anos 1970. Não a toa, foi influenciado diretamente pela poética de Belchior. Para ele, o auto-exílio de Belchior foi tratado de forma "leviana e irresponsável". "A mídia brasileira adora vender por um viés menor, o viés da fofoca. Ele foi tratado de forma irresponsável", reclama. 
Belchior se retirou de cena em 2008, mas ele já havia abandonado a carreira no ano anterior. A escolha do artista alimentou boatos sobre seu desaparecimento. O Fantástico chegou a noticiar dívidas, incluindo de dois veículos abandonados por ele em estacionamentos de São Paulo. Revistas brasileiras chegaram a noticiar, inclusive, que Bel começou a se afastar dos amigos após terminar o casamento de 35 anos com  Ângela Margareth para ficar com Edna Assunção, que ele conheceu, em 2005, no ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins.
A Época noticiou que, contra Bel, pesavam dois mandados de prisão pelo não pagamento de pensões alimentícias e um processo de R$ 1 milhão perdido para um ex-secretário particular. Dentre as lendas, a de que ele teria se hospedado em casa de fãs e até já teria se abrigado em instituições de caridade no Rio Grande do Sul.
"Do ponto de vista de pessoas que gostavam dele, a gente percebeu um movimento de se contrapor a essa narrativa", aponta Oscar Arruda. Em Fortaleza, ele indica o Cantinho do Frango, no bairro Aldeota, e o bloco de pré-Carnaval Os Belchior. "Penso que há um carinho, pela qualidade da obra dele, um artista nosso. A natural comoção da morte levou as pessoas a redescobrirem a força da canção dele. A poética dele e o lirismo se somam". 
"Qualquer manifestação dessa nova geração que valorize a obra do Belchior é importante", continua. "A gente vive uma época em que existe moralismo de todos os lados, é preciso saber fazer a separação do que é obra e o que é vida. E isso é importante pra gente aprender a valorizar a nossa música, principalmente a outros personagens que ainda estão por aí".
Para o músico cearense Cristiano Pinho, existe o orgulho de ser do mesmo Estado, mas vai muito mais além. Ele, no entanto, discorda que o amigo tenha virado febre após a morte, há um ano. Ele lembra "Como Nossos Pais" como um dos auges da carreira do sobralense, assim como tantos outros assuntos "que perpetuavam seu nome antes do futuro infeliz". Ele classifica Belchior como um homem de extrema sensibilidade e intensidade.
"Discordo que o desaparecimento tenha o tornado mais famoso ou importante do que o que ele fez, e muito menos a morte dele. É um pensamento perverso da humanidade com todas as pessoas. O Belchior já se destaca desde que eu tinha 14 anos, que eu me entendo como músico. Ele já se destacava nacionalmente pela maneira universal de compreender o indivíduo", pontua. "Atravessou os momentos difíceis da geração dele em uma época que o País também era diferente. Ele foi um protagonista da sociedade de sua época, independentemente de qualquer polêmica".
Para a cantora Lorena Nunes, ainda é difícil dizer se a música do rapaz latino-americano ficou mais forte após o auto-exílio ou até mesmo sua morte. "Há a saudade de ver um show, de ver o que ele poderia trazer de novo. Acho que deu essa aumentada na vontade de ouví-lo. Ele é presente sempre".
Gero Camilo, que fez o show "Gero Camilo canta Belchior" na última edição do festival Maloca Dragão e participou do programa Conversa Ao Vivo, do O POVO Online, diz que as músicas do sobralense passam mensagens de acordo com o momento político que o País vivia. Ele diz que, atualmente, o Brasil vive momento parecido. O ator, cantor, diretor e dramaturgo diz que a persistência da música de Belchior tem muito a ver com o desenvolvimento do País, que atravessa um período de luta para manter conquistas. "O pouco de desenvolvimento que a gente tinha agora está ameaçado pelo golpe. Estamos em uma situação social delicadíssima, e é por isso que a música dele ainda é contundente", explica. "A questão é superar esse golpe com uma atitude e o Belchior traz essa relevância na obra dele. Não dá para assistir Belchior e dissociar conteúdo político".Ele afirma que foi preciso Belchior morrer para ganhar homenagem nos muros e equipamentos culturais de Fortaleza. "(A cidade) já devia estar com a cara do Belchior estampada há muito tempo. Não só ele. Que essa atitude venha antes do retiro dos artistas", aponta. Ainda assim, reconhece a necessidade de celebrar a permanência do músico. "Resgatar hoje Belchior não é resgatar um ídolo cristalizado, um gênero do passado. Não. É resgatar uma reflexão política, estética, muito contundente com o momento atual. De resistência".

RUBENS RODRIGUES

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