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sexta-feira, 30 de março de 2018

Cicero Paiva e a BETH'S...




Cícero Paiva nasceu em Aracatiaçu, distrito de Sobral, filho de Nelson e Altina. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1952, quando a cidade era ainda Distrito Federal. Era o Rio romântico, discreto, amável, no qual se concentrava a maioria da intelectualidade brasileira que frequentava o Café Vermelinho, o Antônio’s, o Beco das Garrafas, sem essa multidão infernal que há hoje. Podia até faltar água e faltar luz – como diz a letra daquela marchinha de carnaval – mas sobrava charme. 

O Brasil enxergava o Mundo através do Rio e o Mundo via o Brasil pelo prisma do Rio. Ali, Cícero teve contato com as músicas americana, francesa, italiana e com o som brasileiro moderno de Dick Farney, Lúcio Alves, Garoto e Johnny Alf e, no fim da década dos 1950, conheceu e encantou-se com a Bossa Nova de João Gilberto e Tom Jobim e seguiu com ela por toda a vida.

Retornou a Sobral em 1961 e em 11 de Novembro daquele ano inaugurou no Beco do Cotovelo o Las Vegas Drink’s Bar – uma “casa de lanches” – que rapidamente tornou-se o “point” da cidade, não só pelo ineditismo de seus sanduíches (misto-quente, bauru, hotdog), mas também pelo balcão em forma de U, rodeado de banquetas confortáveis, invariavelmente ocupadas pelos “lacerdinhas” do Banco do Brasil. Esta fase durou até 1969, quando houve a interdição do Beco para a construção do BNB.

O ponto foi arrendado e entre Janeiro e Junho Cícero residiu em Santos.
Ao retornar, Cícero fez uma pequena reforma no local, que passou a se chamar Beth Lanches (o nome fazia uma alusão carinhosa à sua filha). Com a construção do calçadão do Beco, entre 1978 e 1979, passou a se chamar Beth’s Pizzaria – mais uma inovação trazida por Cícero – e mesas foram colocadas no espaço para acomodar mais clientes à noite.

Tornou-se hábito, então, ter-se música ao vivo, hábito este que perdurou entre 1980 e 1997, cujo sucesso foi tanto, que durante certo período podia-se curtir música de alto nível de Terça-feira a Domingo. Transformou-se no lugar-comum da juventude universitária – eu inclusive – fã incondicional da conjunção de capirinha de vodca (prodigamente servida pelo Adalberto), música ao vivo, um bom papo e muita paquera. Vivia-se o ocaso da ditadura militar, era a época da Anistia. Foram tempos de luta e glória. Isto sem falar na famosa “canja” de Cícero com seu violão bossanovista, concedida invariavelmente de madrugadinha, hábito que ele conserva até hoje, embora com mais raridade do que gostaria. 

Enquanto escrevo, me vem um sopro de juventude, ao recordar a festa dos 20 anos da Beth’s em Novembro de 1981, que durou até 5 da manhã
e provocou muitos comentários pela cidade. Eu guardava até algum tempo a camiseta que foi traje obrigatório do evento, mas como a minha memória hoje é apenas uma “vaga lembrança de que um dia tive memória”, não sei como, quando e aonde a perdi. Junto com o sucesso da música ao vivo, veio de cambulhada a idéia de fazer um festival de música em 1985, que marcou a noite sobralense com o natural sucesso de tudo que Cícero faz.

A década dos 1990 começou com tudo. Como era agradável passar, literalmente, o Sábado em companhia de Cícero e de muita cerveja gelada. A conversa fluía fácil e nos tornamos amigos e somos amigos até hoje, além do que, eles são meus padrinhos de casamento.

Vinícius de Moraes dizia: - “A pior solidão do Mundo é a companhia de um
paulista, mesmo que seja com um chops e dois pasté”. Pois Cícero é diametralmente o oposto do sentido desta frase. A Copa do Mundo de 1994, nós a vimos na Beth’s e após cada vitória a comemoração era apoteótica. Foi a Copa da catarse.
O clímax do sucesso da Beth’s foi sem dúvida a famosíssima “Quinta sem lei”, que perdurou entre 1996 e 1997. Conheci gente que vinha de Fortaleza, passava a noite na Beth’s e de manhã retornava à capital. Eu mesmo, não me cansava de virar a noite ali, ia para casa, tomava um banho e ia trabalhar “sóbrio como um bispo”. Em 1997, “the dream is over”, “queimou-se a negra do doce”: não houve mais música ao vivo. 

Cícero já me confidenciou mais de uma vez, que ele cometeu o erro de trazer de Fortaleza grupos de “pagode-light” e isto afastou parte de sua boa clientela, fato que o aborreceu muito, levando-o a zerar o episódio. Neste mesmo fatídico ano, Cícero saiu do Beco que, sem a Beth’s, provocou na minha memória afetiva um oco escuro, frio e sem som. Foi um choque para a maioria dos clientes, mas foi necessário para ele. Surgiu então o Deol Bar, fazendo apenas uma alusão à sua localização, na Rua Deolindo Barreto e que durou até Janeiro de 1998. 

Em Janeiro de 1998, iniciou-se uma nova fase, com o nome Cícero’s Bar, que a meu ver, é uma síntese de todas as outras, porém muito mais intimista, como é de gosto do dono. Não importa que nome tenha a criatura, o criador é o mesmo, cujo talento é invisível como a música e evidente como o som e é como um bom vinho, que sempre melhora com o tempo.

(Prof. Júlio César Monteiro)

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